Remonta a Julho de 2004 a peça que, então, publiquei no semanário «O Crime». Apesar da denúncia à autoridade máxima do Seminário de Beja, ao que sabemos nenhuma diligência, até hoje, foi promovida pela hierarquia no sentido de apurar factos e acontecimentos.
A actualidade do artigo é inquestionável, e as denúncias com rosto ali postadas são à prova de fogo. Mas, apesar do formalismo de uma «culpa assumida», a Igreja continua a assobiar para o lado - alegando estar a ser «perseguida»...
Seminário de Beja fornecia «meninos» para orgias
O silêncio das sotainas
Durante anos o Seminário de Beja escondeu vícios privados e ostentou públicas virtudes. Senhores da região, muito beatos, estenderam a sua «caridade» à inocência e miséria de meninos pobres que ficaram marcados para toda a vida. O manto protector das sotainas ainda hoje é cúmplice de silêncios imemoriais. A religiosidade do povo alentejano, aos poucos e timidamente, procura resgatar Cristo da ignomínia de seus ardentes devotos…
Majestoso e imponente, o edifício do seminário de Beja ergue-se beijado pelo tórrido calor alentejano à quietude pardacenta do jardim público, onde velhos e crianças pela mão descansam e passeiam entre o arvoredo.
A cidade recebe-nos prazenteira e simpática à nossa circunstância de forasteiros. O povo alentejano é caloroso, sendo a sua abertura reconhecida por todos os que demandam para essas bandas. Há, no entanto, alguns «códigos» que devem ser respeitados e a sua intimidade dificilmente é exposta à curiosidade dos forasteiros, principalmente quando se trata de jornalistas. Há alguns esqueletos guardados no armário que a patine do tempo teima em fazer esquecer. E há uma mágoa guardada, bem escondida na vergonha sentida de um passado marcado pela ignomínia.
O latifúndio não foi, para os alentejanos, um mero sistema de desigualdade e injustiça na distribuição da propriedade a sul do Tejo. Foi mais que isso. Constituiu um punhal cravado na honra de cada homem e de cada mulher que, juntamente com a terra, foram propriedade de senhores poderosos. Não muitos decénios atrás, ao senhor da terra assistia uma espécie de direito ancestral a «tirar o cabaço» às raparigas. Para além da força de trabalho extenuada à jorna de sol a sol, a entrega tinha que ser total: a virgindade das moçoilas também havia de ser parte do inventário, da arrogância e da vaidade do agrário.
E importa falar destes tempos imemoriais para que se perceba toda a lógica de silêncios e cumplicidades que medra, ainda hoje, em terra alentejana. Uma terra e um povo de uma enorme religiosidade, ao contrário do que possa parecerem pela redutora análise política de movimentos sociais e influências ideológicas. Ao mesmo tempo, uma sólida consciência anticlerical perpassa a mente da maior parte das gentes, fruto de uma memória histórica que cola o clero à sombra das benesses dos poderosos e à guarda conveniente e afagadora dos poderes públicos. Salvo raras excepções, os padres não são benquistos das gentes alentejanas.
O roubo da inocência
Em fim-de-semana tórrido de há uma década atrás, Filipe (nome fictício) deixa as vetustas paredes do seminário para, com a alegria da sua puberdade inocente, ir passar o dia a casa de um benemérito, pessoa muito ligada à Igreja e à caridade, assim uma espécie de protector de pobres e desvalidos… Na herdade, a poucos quilómetros de Beja, quem vai para a aldeia de S. Brissos, esperam-no iguarias e senhores simpáticos. Apesar de lhe tocarem «nas partes» e lhe darem beijos repenicados e insistentes, o miúdo nunca por essa altura se apercebeu ser ele – e não os pretos servidos no repasto – a iguaria…
«Só tomei consciência de tudo quando, já adolescente, me apercebi que o carinho e afecto dos adultos não deve ter expressões dessas nas crianças», diz-nos Filipe. Ainda hoje, largado e seminário «pela incompatibilidade de vocação», casado e pai de filhos, este homem ainda jovem tem dificuldade em lidar com os seus medos, com esse lado obscuro de um passado que lhe roubou a inocência. Nunca mais passou pela herdade, que entretanto mudou de proprietários, e dificilmente nas suas idas a Beja consegue olhar, sem que uma lágrima lhe aflore o rosto, as paredes de uma sobriedade ostensiva em que se ergue o Seminário Diocesano de Nossa Senhora de Fátima (assim se chama com todas as letras, em rigor da verdade). É que, dentro dessas mesmas paredes, desses muros de silêncio cúmplice, foi também alvo da rapina libidinosa de quem usava «em vão o nome do Senhor» …
Silêncios cúmplices
Na cidade comenta-se, ainda hoje, esse passado negro da instituição secular e recordam-se os silêncios dos vários poderes. E fala-se das actividades de um sacerdote, responsável por uma instituição de acolhimento de estudantes, qual predador, que continua, pesem embora os escândalos de pedofilia na capital, a perseguir jovens e a seduzir meninos a troco de prendas, comprando a sua inocência e a sua pobreza. Todos sabem, todos calam, todos são cúmplices! – A começar peles autoridades, a quem estas actividades pedófilas não são alheias.
Pedro (nome fictício) também conheceu a herdade e, como Filipe, também ele saltitou a sua inocência no regaço de senhores muito beatos. Confrontado com factos, datas, locais e práticas que só quer esquecer, reagiu com um choro convulsivo e quase silencioso, ao mesmo tempo que o seu corpo se via possuído de um tremor antigo feito de vergonha e de dor. Continua ligado às coisas da Igreja, não seguiu o sacerdócio porque, entretanto, por altura da adolescência, a sexualidade despertou abrupta e vivificada, regeneradora mesmo, nos amores clandestinos de uma senhora mal casada. Separações consumadas, a dela com o marido, a dele com o passado – partilham um pequeno apartamento na margem sul do Tejo, mesmo ali em frente ao elefante branco que foi a Lisnave, berço de greves e lutas sociais. Pedro não fala, mas procura resgatar Cristo dessa ignomínia despudorada de sacerdotes que escondem velhos segredos pecaminosos nas franjas das sotainas…
Há muito tempo…
O actual reitor do seminário de Beja, padre Manuel Rosário, diz-nos: «Há dez anos atrás encontrava-me no estrangeiro». Curiosamente – ao contrário de parte substancial do povo da velha urbe alentejana -, desconhece «por completo o assunto» … E esta posição, ao mesmo tempo cautelosa e contraditória, ilustra a mundivivência da cidade e os silêncios que lhe subjazem. Em privado, longe de um comprometedor gravador ou de uma inconveniente máquina fotográfica, todos são unânimes em ratificar histórias de abusos e vilanias. Mas calam em público, numa cumplicidade negligente, o que é de seu foro privado, de conversas em família, ou em tertúlias de cafés da baixa.
A cidade, a bela Beja palco de tantas irreverências revolucionárias, cala-se à baixeza maior do rasgar das inocências e do desflorar das alegrias soltas desses «filhos do povo que nunca foram meninos». Pior do que a instituição latifundiária, causadora de tanta fome e de tanta dor, é essa memória antiga que todos – os das esquerdas e os das direitas – teimam em esconder nos armários.
A sociedade alentejana só se livrará do espectro lúgubre dos esqueletos que transporta na História quando, algum dia, se libertar do silêncio cúmplice de seus vícios privados. Filipe e Pedro são os primeiros heróis dessa missão histórica…
António Manuel Pinho
[in «O Crime», 1 Julho 2004]
Majestoso e imponente, o edifício do seminário de Beja ergue-se beijado pelo tórrido calor alentejano à quietude pardacenta do jardim público, onde velhos e crianças pela mão descansam e passeiam entre o arvoredo.
A cidade recebe-nos prazenteira e simpática à nossa circunstância de forasteiros. O povo alentejano é caloroso, sendo a sua abertura reconhecida por todos os que demandam para essas bandas. Há, no entanto, alguns «códigos» que devem ser respeitados e a sua intimidade dificilmente é exposta à curiosidade dos forasteiros, principalmente quando se trata de jornalistas. Há alguns esqueletos guardados no armário que a patine do tempo teima em fazer esquecer. E há uma mágoa guardada, bem escondida na vergonha sentida de um passado marcado pela ignomínia.
O latifúndio não foi, para os alentejanos, um mero sistema de desigualdade e injustiça na distribuição da propriedade a sul do Tejo. Foi mais que isso. Constituiu um punhal cravado na honra de cada homem e de cada mulher que, juntamente com a terra, foram propriedade de senhores poderosos. Não muitos decénios atrás, ao senhor da terra assistia uma espécie de direito ancestral a «tirar o cabaço» às raparigas. Para além da força de trabalho extenuada à jorna de sol a sol, a entrega tinha que ser total: a virgindade das moçoilas também havia de ser parte do inventário, da arrogância e da vaidade do agrário.
E importa falar destes tempos imemoriais para que se perceba toda a lógica de silêncios e cumplicidades que medra, ainda hoje, em terra alentejana. Uma terra e um povo de uma enorme religiosidade, ao contrário do que possa parecerem pela redutora análise política de movimentos sociais e influências ideológicas. Ao mesmo tempo, uma sólida consciência anticlerical perpassa a mente da maior parte das gentes, fruto de uma memória histórica que cola o clero à sombra das benesses dos poderosos e à guarda conveniente e afagadora dos poderes públicos. Salvo raras excepções, os padres não são benquistos das gentes alentejanas.
O roubo da inocência
Em fim-de-semana tórrido de há uma década atrás, Filipe (nome fictício) deixa as vetustas paredes do seminário para, com a alegria da sua puberdade inocente, ir passar o dia a casa de um benemérito, pessoa muito ligada à Igreja e à caridade, assim uma espécie de protector de pobres e desvalidos… Na herdade, a poucos quilómetros de Beja, quem vai para a aldeia de S. Brissos, esperam-no iguarias e senhores simpáticos. Apesar de lhe tocarem «nas partes» e lhe darem beijos repenicados e insistentes, o miúdo nunca por essa altura se apercebeu ser ele – e não os pretos servidos no repasto – a iguaria…
«Só tomei consciência de tudo quando, já adolescente, me apercebi que o carinho e afecto dos adultos não deve ter expressões dessas nas crianças», diz-nos Filipe. Ainda hoje, largado e seminário «pela incompatibilidade de vocação», casado e pai de filhos, este homem ainda jovem tem dificuldade em lidar com os seus medos, com esse lado obscuro de um passado que lhe roubou a inocência. Nunca mais passou pela herdade, que entretanto mudou de proprietários, e dificilmente nas suas idas a Beja consegue olhar, sem que uma lágrima lhe aflore o rosto, as paredes de uma sobriedade ostensiva em que se ergue o Seminário Diocesano de Nossa Senhora de Fátima (assim se chama com todas as letras, em rigor da verdade). É que, dentro dessas mesmas paredes, desses muros de silêncio cúmplice, foi também alvo da rapina libidinosa de quem usava «em vão o nome do Senhor» …
Silêncios cúmplices
Na cidade comenta-se, ainda hoje, esse passado negro da instituição secular e recordam-se os silêncios dos vários poderes. E fala-se das actividades de um sacerdote, responsável por uma instituição de acolhimento de estudantes, qual predador, que continua, pesem embora os escândalos de pedofilia na capital, a perseguir jovens e a seduzir meninos a troco de prendas, comprando a sua inocência e a sua pobreza. Todos sabem, todos calam, todos são cúmplices! – A começar peles autoridades, a quem estas actividades pedófilas não são alheias.
Pedro (nome fictício) também conheceu a herdade e, como Filipe, também ele saltitou a sua inocência no regaço de senhores muito beatos. Confrontado com factos, datas, locais e práticas que só quer esquecer, reagiu com um choro convulsivo e quase silencioso, ao mesmo tempo que o seu corpo se via possuído de um tremor antigo feito de vergonha e de dor. Continua ligado às coisas da Igreja, não seguiu o sacerdócio porque, entretanto, por altura da adolescência, a sexualidade despertou abrupta e vivificada, regeneradora mesmo, nos amores clandestinos de uma senhora mal casada. Separações consumadas, a dela com o marido, a dele com o passado – partilham um pequeno apartamento na margem sul do Tejo, mesmo ali em frente ao elefante branco que foi a Lisnave, berço de greves e lutas sociais. Pedro não fala, mas procura resgatar Cristo dessa ignomínia despudorada de sacerdotes que escondem velhos segredos pecaminosos nas franjas das sotainas…
Há muito tempo…
O actual reitor do seminário de Beja, padre Manuel Rosário, diz-nos: «Há dez anos atrás encontrava-me no estrangeiro». Curiosamente – ao contrário de parte substancial do povo da velha urbe alentejana -, desconhece «por completo o assunto» … E esta posição, ao mesmo tempo cautelosa e contraditória, ilustra a mundivivência da cidade e os silêncios que lhe subjazem. Em privado, longe de um comprometedor gravador ou de uma inconveniente máquina fotográfica, todos são unânimes em ratificar histórias de abusos e vilanias. Mas calam em público, numa cumplicidade negligente, o que é de seu foro privado, de conversas em família, ou em tertúlias de cafés da baixa.
A cidade, a bela Beja palco de tantas irreverências revolucionárias, cala-se à baixeza maior do rasgar das inocências e do desflorar das alegrias soltas desses «filhos do povo que nunca foram meninos». Pior do que a instituição latifundiária, causadora de tanta fome e de tanta dor, é essa memória antiga que todos – os das esquerdas e os das direitas – teimam em esconder nos armários.
A sociedade alentejana só se livrará do espectro lúgubre dos esqueletos que transporta na História quando, algum dia, se libertar do silêncio cúmplice de seus vícios privados. Filipe e Pedro são os primeiros heróis dessa missão histórica…
António Manuel Pinho
[in «O Crime», 1 Julho 2004]
Histórias bem tristes e deprimentes.
ResponderEliminarA Igreja é uma construção social e, como tal, sujeita a todos os vícios da sociedade...Bem no fundo, Deus está ausente na Igreja Católica como em qualquer outra, mas o problema é que a Igreja Católica tem rituais que favorecem tais práticas, a título de exemplo, um deles, a confissão, coloca um adolescente ajoelhado junto aos joelhos de um padre, posição a todos os títulos impulsionadora das paixões mais torpes, tanto mais que é realizada no recato de um canto escuro duma qualquer igreja.
Vale a pena distinguirmos Deus das igrejas pois Deus é porventura o pensamento mais sublime a que o ser humano pode chegar...Deus não pode ser uma Entidade feita para o homem, à medida do homem, pois Deus é Senhor de todo o Universo e se nos criou a nós também criou as plantas e os animais, ou seja criou a vida, tal como criou o Universo, se é que Deus não é, Ele próprio, o espírito do Cosmos.
No fundo de nós, sentimos Deus e talvez seja por isso que os seres humanos são tão propícios a aceitarem as religiões, por mais estúpidas que sejam....