terça-feira, 30 de março de 2010

Debates sobre a Democracia.II

O texto é antigo, remonta a 2005, e foi redigido tendo em vista as Eleições Presidenciais desse ano. Pensamos, no entanto, que a génese das ideias aí defendidas revela uma flagrante actualidade e coloca no centro do debate o mesmo tipo de preocupações.
Assinado por António Pedro Dores, o documento é, paralelamente, a síntese de uma reflexão colectiva a que muitos nos entregamos.


Movimento para a IV República

Passou a ser lugar comum a noção de estarmos a viver uma crise de regime em Portugal. Todavia, não se vislumbram sinais de regeneração política, o que não pode deixar de estar nos fundamentos da acelerada ciclicidade das desistências e dos abandonos políticos, ao mais alto nível, e a persistência nos cargos de mais baixo nível, mais difíceis de escrutinar publicamente. A arrogância de quem se imagina capaz de, por si só, com a clique de amigos e com os apoios dos boys for the jobs, impor aos portugueses negócios inexplicados e, provavelmente inexplicáveis, alterna com a aparente impotência do Estado, também ela pouco transparente e muito selectiva.

A instabilidade política é, obviamente, induzida pela profunda corruptabilidade do regime. Apesar da avalancha de denúncias dos últimos anos, evidentemente, nada de essencial tem sido possível melhorar. Os partidos já sentiram necessidade de limpar as suas hostes, com evidentes dificuldades e com resultados nada claros. O sentimento de impotência não pode substituir a confiança na democracia. O sentimento de impunidade e os queixumes para saco roto – ou, pior, a perseguição dos denunciantes – corroem o orgulho que temos por Portugal, a vontade de sermos melhores portugueses, as expectativas de vidas melhores para os nossos pais e para os nossos filhos.

A alternância democrática foi capturada pelos arranjos políticos implícitos entre duas facções que parecem digladiar-se quando de facto cooperam na manutenção do estado das coisas. Sociais democratas para beneficiarem directamente dos fundos da coesão social da União Europeia, revelam-se, à direita e à esquerda, neo-liberais na distribuição desses benefícios no interior, estando Portugal com taxas de pobreza e taxas de desigualdade social das mais altas, analfabetismo crónico e iliteracia desgraçadamente única no espaço europeu, ineficiência dos processos de ensino e impedimentos organizados – e injustos – ao desenvolvimento educativo e profissional dos jovens, quando as taxas de desemprego de licenciados são enormes, num país com escassez de pessoas qualificadas. O trabalho, pela pobreza dos sistemas produtivos e da gestão de recursos humanos, ajuda a desqualificar uma mão-de-obra já de si desqualificada, num ciclo de enterra moral e cívica das potencialidades dos portugueses, que continuam a ser mais bem sucedidos lá fora do que reconhecidos no seu próprio país, para realização de uma estafada, miserável mas persistente política de exploração das vantagens competitivas do preço baixo do factor trabalho no nosso País.

Os portugueses têm razões para não acreditarem em políticos que se comportam como aristocratas ou como contabilistas. Até porque já lhes deram todos os créditos possíveis e imaginários, e vemos agora no que resultou. Não está em causa a sinceridade ou a perversidade com que sempre são desenhadas políticas que mexem com interesses. O que está em causa é a necessidade inadiável de mudar de rumo, democraticamente, o que manifestamente tarda e não parece possível com o actual regime. Há pois que ir mais fundo na exploração das potencialidades democráticas e aprender com outros povos mais experientes democraticamente como se podem ultrapassar politicamente crises de nó cego como aquelas que estamos a viver.

Procura-se quem represente e suporte a vontade dos portugueses de se mobilizarem democraticamente para as tarefas de produção de uma nova estratégia capaz de colocar o país com capacidades proactivas e inovadoras no mundo global em que estamos inseridos, em benefício dos portugueses e do bem estar para quem viva em Portugal. Essa mobilização não pode deixar de ser radicalmente crítica em relação à intolerável tolerância da cunha e da prateleira, do uso dos dinheiros públicos para distribuir pelos correligionários e pelos arrivistas colectores de financiamentos políticos, do desleixo na colecta de impostos e de organização da segurança social – que se anuncia velhacamente falida aos que dela esperavam que cumprisse o contrato que, entretanto, beneficia (escandalosamente) quem nada deveria poder esperar desse seguro social dos trabalhadores portugueses.

Pode caber à Presidência da República abrir debates e dar voz à vontade e às iniciativas de todos os portugueses, e não apenas aqueles que prometem a árvore das patacas ou agricultura biológica das revistas cor-de-rosa. Pode caber ao Presidente da Republica servir a autonomia das instituições políticas, a consonância dos seus comportamentos relativamente à vontade dos Portugueses e não aceitar quaisquer interferências do Sr. Cunha, sejam elas veiculadas por amigalhaços ou por partidos inteiros. A justiça – aquela que é produzida pelas instituições judiciais e a outra, mais difusa, gerada pelo ambiente político e pelas políticas concretas quotidianas – deve ser sistematicamente escrutinada e não apenas para efeitos mediáticos ou para entreter os telespectadores. Não faz nenhum sentido entregar a resolução dos problemas estruturais da justiça portuguesa às corporações e às personalidades que construíram e beneficiaram – e continuam a beneficiar – da injustiça que campeia descarada e impunemente. Não é aceitável que bons desempenhos profissionais sejam postos em causa por um sistema de profunda interferência política na administração do Estado, que arreda toda a possibilidade de demonstrações de mérito e, para isso mesmo, faz circular o pessoal de confiança, em alta velocidade, por todos os milhares de lugares disponíveis, tornando impossível qualquer tipo de avaliação de desempenho administrativo e político.

Pode caber ao Presidente da República trazer os portugueses a construírem o Portugal do século XXI, já que o que também está em causa, no magma da globalização e das políticas europeias, é saber o que os portugueses querem ser no futuro: os herdeiros de uma língua e cultura minoritária e folclórica para vender aos turistas da terceira idade? Ou um povo que, mais uma vez, será capaz de dar novos mundos ao mundo, de encontrar caminhos novos para a justiça social, nos quadros financeiros e demográficos que são conhecidos mas em quadros políticos e sociais que temos oportunidade de, com a nossa vontade colectiva, encontrar democraticamente. Para atingir esses objectivos é indispensável começarmos de imediato a alterar comportamentos, nomeadamente a sermos exigentes connosco próprios e não aceitarmos mais entregar os pontos a quem nos melhor garante que não nos incomodará – até porque a experiência mostra como nos enganamos frequentemente nesse juízo. Temos que exigir de nós mesmos, e em primeiro lugar às instituições, que as denúncias e as queixas que chegam à administração serão tratadas em tempo útil, conforme a lei, e de modo empenhado e sério, em vez do velho sacudir de água do capote. Para que serve votar num candidato a Presidente da República com responsabilidades na estruturação de um regime que, manifestamente, caiu da cadeira, sem lhe pedir uma avaliação específica e criteriosa do que nos trouxe a este beco? Para assistirmos ao fecho de mais saídas para o regime? Para adiarmos para amanhã o que se pode começar a fazer hoje?

Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os que lutam por sobreviver, aqueles a quem não são reconhecidos os seus direitos e que confrontam com os esquemas kafkianos montados pelo tráfico de influências e pela corrupção, os que são humilhados por querem denunciar situações ilícitas são igualmente responsáveis, se comparados com aqueles que recebem reformas ilegítimas para que possam continuar a acumular benesses e manterem a culpa solteira? Nestes trinta e um anos de democracia, houve quem desse tudo, incluindo o bem estar pessoal e das respectivas famílias, para melhorar Portugal e também houve os que só pensaram em si mesmo, nos seus pergaminhos e nas conjuras que fossem necessárias para não terem obstáculos à afirmação das suas irresponsáveis convicções, ao ponto de o povo confundir os bem intencionados e os mal intencionados de entre os vencedores destas competições organizadas pelo Sr. Cunha.

Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os responsáveis não podem continuar irresponsáveis.


5 Setembro 2005

António Pedro Dores


Foto: JJ LUZIA HENRIQUES

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