sábado, 30 de janeiro de 2010

Repensar a sociedade - a visão de um sociólogo

Assumamos a marginalidade

António Pedro Dores*

A situação política caracteriza-se por existirem condições objectivas propícias a uma eclosão de lutas sociais para transformar a sociedade e, ao mesmo tempo, a falta de condições subjectivas para que as energias propícias à transformação social venham a proporcionar a abertura de perspectivas de evolução positiva da vida das pessoas.

Ainda que haja revolta – como em Paris em 2005 ou na Grécia em 2008, ou durante as contestações das cimeiras ou durante os Forum Sociais – que fazer com ela? Deveremos colaborar na integração social dos excluídos ou acompanhá-los na construção de formas de organização social diferentes das actuais, sob as quais não sejam mais tratados como não pessoas?

A resposta a esta pergunta depende do diagnóstico das causas da incapacidade de actual resistência perante a imoralidade das causas da crise auto-atribuídas pelas classes dominantes. Se se entender que se vive numa sociedade integradora, escolher-se-á a primeira resposta. Se, como quem escreve este texto, se acredita que: a) o sucesso da actual classe política global ocidental depende da sua coesão interna e, por isso, dos privilégios que a si mesma se atribuiu, fazendo com que todas as sociedades se organizem em torno da distribuição de privilégios – como antes da Revolução Francesa, embora de outra forma e com um âmbito planetário. Por ser assim é que, mais Estado ou menos Estado, mais investimento público ou menos, são os privilégios que são o reduto essencial a defender e não há político que sobreviva se não se dispuser a pactuar com isso; b) a crescente desigualdade social não decorre de critérios ideológicos em si (todos simulam ser modernos) mas antes da exclusão imoral dos povos de Estados dependentes, dos imigrantes, todas as populações estigmatizadas a viverem nos territórios nacionais dos Estados dominantes e ainda de todas as populações estigmatizáveis externa ou internamente – incluindo os islâmicos e profissões inteiras altamente qualificadas, como os professores em Portugal. São tais processos de estigmatização a justificação política para o trabalho imoral e anti-moderno de exclusão crescente dos povos da vida política e económica. “To blame de victim!”

As provocações bélicas, a vergonhosa apropriação dos recursos naturais globais, as provocações inter-civilizacionais, a destruição do Direito como sistema de regras de aspiração universal para aplicação da justiça, a insensibilidade social e económica, a corrupção, o facilitismo cognitivo das ideologias dominantes, seja do lado do neo-liberalismo seja do lado do debate político em geral, incluindo à esquerda, facilitismo esse com implicações nas políticas educativas, a ganância e o desprezo social como modelos morais, tudo se pode explicar pela convergência entre ânsia organizada de privilégios – tipo ser engenheiro por enviar faxes a organizações criminosas e todos acharem muito bem e muito legítimo, do foro privado – e a determinação em fazer vítimas a quem poder atribuir culpas – vejam-se os debates parlamentares.

Não se pode é explicar isto como um fenómeno nacional. Este é um fenómeno global, com especificidades nacionais, sem dúvida.

A política, como sector de actividade especializado e profissionalizado, numa sociedade de exclusão (em que a explosão informativa não permite, no imediato, uma explosão cognitiva mas antes uma confusão mental, apesar dos aumentos de escolaridade e da divulgação do inglês como língua franca global. A explosão da informação, no imediato, permite, isso sim, privilegiar quem esteja em melhores condições de manipular símbolos, como as redes de informação financeira e a comunicação social), a política torna-se formalmente desligada da vida dos povos e, ela própria, parte das dinâmicas de exclusão (veja-se o controlo da política pelas seitas secretas, a que alguns chamam equivocamente os poderes económicos: não há poderes económicos sem relações sociais (e morais) que os suportem! É o que as classes dominantes chamam sociedade selecta, isto é, redes de confiança (as mesmas que auferiram de exuberantes “subsídios” em tempo de crise para evitar “problemas sistémicos”. Claro.), incluindo os negócios privados do Estado, como o sector das sucatas, cuja confiança entre os parceiros passará à história através do símbolo exotérico que são os ro(u)ba(-)los).

A esquerda, bem como muitos sectores da economia social e da vida intelectual, deixaram-se capturar pelas dinâmicas de exclusão – que os ameaçam mas também oferecem modelos de sucesso social (vide comentadores ou agentes filantrópicos ou famosos). Aceitam discutir a agenda dos vigaristas e ilusionistas no poder. Os rendimentos da exploração concentrados pelos Estados possibilitam uma alargada autonomia da classe política relativamente ao capitalismo e, do ponto de vista deste, tem a vantagem (indispensável) de manter a ordem, isto é distribuir as migalhas (metade dos 40% de pobres em Portugal não o são tecnicamente porque recebem subsídios directos do Estado por aceitarem pedir o reconhecimento da sua auto-declaração de pobreza: a humilhação porque passam os desempregados, tratados como arguidos de crimes, é só um aspecto do modo como as populações dominadas são tratadas) e o cacete (vejam-se os preparativos para a guerra social que duram há muitos anos nas polícias, nas forças armadas e no sistema judicial, especialmente a nível intergovernamental na Europa).

O capitalismo em crise (de desmascaramento e de confiança – necessidade reorganização das seitas) esteve de acordo na necessidade de se moralizar em troca do branqueamento dos mecanismos imorais propulsores da crise: em troca do Estado – solícito e já preparado – assegurar a Ordem. Uma vez percebido o impasse e a incapacidade de reacção do campo popular, tudo voltou rapidamente à mesma exacta conjuntura política que gerou a crise, apenas agora com deficits maiores, a pagar pelos impostos de todos. Estamos exactamente na mesma, em termos de relações de força políticas, do que antes da crise, e portanto a continuar a ravina descendente do ponto de vista da esperança, do desemprego, dos salários, das pensões, da precariedade, da auto-estima.

O que há a fazer é estabelecer uma moralidade política anti-situacionista, radicalizar as reivindicações de equidade – desde logo no sector da justiça, por ser politicamente pelo menos tão essencial como os aspectos económicos – e dar conteúdo convivial à reflexão política, isto é, criar uma forma de fazer política – no sentido institucional – oponível àquela que se pratica nas instituições actualmente em funcionamento. Há que criar uma rede de relações políticas subversivas da sociedade da exclusão (por esta ser anti-moderna, nomeadamente por viver dos privilégios, da violência, da exploração das pessoas e da natureza, da mentira e da perversidade moral) a partir de uma discussão sustentada em instituições próprias para o efeito.

A democracia – como a sua civilização – está em grave crise, precisamente por não ser capaz, na prática, de admitir a produção de alternativas políticas enquanto este sistema de poder estiver no comando. Todos os partidos, em qualquer país ocidental, estão condenados à esquizofrenia de dizerem uma coisa na oposição e o seu contrário no governo. Logo, a democracia reclama novas instituições. Há que criá-las imaginando-as.

Essas instituições deveriam ser formas variadas e variáveis de relacionamento entre pequenos núcleos de amigos que se entendessem bem uns com os outros e cujas iniciativas fossem apoiadas por outros núcleos que com eles queiram partilhar uma agenda transformadora da sociedade em ruptura com a agenda da situação, mesmo que discordem das perspectivas uns dos outros. À unidade dos partidos do centrão e à impotência dos partidos de fora do arco do poder oponhamos a nossa liberdade de expressão e de comunicação em condições de assumida e orgulhosa marginalidade, através dos novos meios actualmente disponíveis, com toda a gente livre que por aí quiser emergir, independentemente das ideias que tenha e da sua representatividade social: as ideias e os ideais não são melhores por serem populares.

A luta pelo poder dentro das novas instituições a criar – como acontece também nas actuais instituições – será feita por gente com ideais muito distintos. A unidade far-se-á apenas (o que já não é pouco) contra a sociedade da exclusão e os privilégios, com todos os que queiram ver acabada a vergonha que se vive hoje – para que a nossa civilização ocidental volte a saber o que fazer de si própria.

Não nos deve bastar reclamar a mudança de modelo de desenvolvimento: devemos querer e saber construir novas relações sociais, onde caibam todos os seres humanos, em nome da Humanidade que desejamos um dia poder ser.

A política na era da globalização não pode ser uma reflexão sobre Portugal. Tem de ser uma discussão sobre as nossas possibilidades de colaboração com todas as forças da liberdade e da igualdade deste mundo que se entendam como oponíveis ao status quo e que dele estejam dispostas a libertar-se. As nossas redes políticas devem estar abertas a todas as redes que se interessem por política e possam contribuir para o resultado de alterar a situação, nomeadamente o apear da classe política actual e, com ela, das redes de solidariedade corruptas de que todos os dias temos sinais vividos nas nossas vidas quotidianas, e instalar uma conflitualidade democrática não armada. As nossas redes políticas devem saber ensinar-nos a vivermos nós próprios de outras maneiras, com recurso mínimo à violência. E também organizar a defesa da nossa liberdade política, pois o autoritarismo não tolera oposições.

Em resumo: há que contribuir para a construção de um novo tabuleiro político – que já tem muitas peças em funcionamento – separado e denunciador do tabuleiro actual. É preciso que passemos a credibilizar e a sinalizar e a partilhar e a estimular e a organizar as ideias marginais e de contraposição. É assim a democracia! É preciso premiarmos a dissonância e a dissidência, reconhecer ideias e sugestões que nos tocam e encontrar formas de dar força a isso a esse debate: por exemplo, organizando encontros de mútuo reconhecimento e debate entre pessoas e grupos alinhados nestes princípios de marginalidade orgulhosa e jornais electrónicos de divulgação de tais eventos subversivos para todos os gostos e sem censuras.

Sinalizemos com clareza e determinação a vontade de antecipação daquilo que um dia terá forçosamente de acontecer: o fim dos privilégios. Poupando aos povos de mais guerras, perseguições, conspirações e destruições de ecossistemas. Esta é a alternativa à decadência para um retorno aos privilégios feudais, que opõem os que têm reformas milionárias por nunca terem trabalhado que não fosse a pensar no dinheiro que ganham e os que vão perdendo as reformas a que tinham direito assegurado, como os clientes do BPP ou os trabalhadores da função pública.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2010

*Sociólogo, Professor Universitário

2 comentários:

  1. "...há que contribuir para a construção de um novo tabuleiro político..."
    Tal só será possível através de uma mudança brusca e violenta levada a cabo por uma parte da sociedade. Possivelmente, aquela parte que pouco tem a perder com a extinção da "Democracia Hereditária" que actualmente existe em Portugal.

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  2. Lembro-me de um professor dizer que se o mundo avançava, era graças aos marginais.

    Sou da opinião que este esquema governativo entrou em colapso. Mas acho que não somos nós a levar a cabo "a revolução". Sinto que nos falta a estrutura mental para completa-la. Cabe-nos sim a tarefa de abrir caminho de um lado e adubar a terra do outro. Abrir caminho disseminando novas ideias, a abraçar todas as contribuições e adubar a terra dando uma educação capaz de termos no futuro seres pensantes em vez de ferramentas pensantes de mente toldada para perpetuar o funcionamento da máquina.

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